Álvaro Leite correu a maratona da Coreia do Norte e encontrou um país em silêncio
É um país à parte. Não há papéis no chão, não há publicidade nas ruas, não há lojas, cafés ou pastelarias. Há, isso sim, propaganda do governo por todo o lado, altifalantes a debitar discursos do regime ditatorial, guias locais colados aos estrangeiros a controlar cada passo, cada fotografia. Os carros não buzinam e só os militares e as autoridades têm direito a conduzir os veículos de quatro rodas, o resto anda de bicicleta. O povo é tímido e simpático. Álvaro Leite, natural do Porto, 45 anos, comissário de bordo de longo curso da TAP, correu na maratona da Coreia do Norte. Ficou em 31.º lugar entre 1200 atletas e conta-nos como foi.
Texto de Sara Dias Oliveira
Passou três dias sem internet, sem telemóvel, sem saber nada do que se passava no resto do mundo. Encontrou mais três portugueses que participaram na maratona. Todos os passos eram seguidos por guias norte-coreanos. A comida à base de vegetais e a quase ausência de hidratos de carbono não ajudaram a preparar o corpo para a prova. Emagreceu três quilos. A falta de água e outros abastecimentos durante a competição também lhe dificultou a corrida.
Foi recebido por 80 mil pessoas num estádio a aplaudir de pé os 1200 atletas e isso não se esquece. «Momento único que guardarei nas minhas memórias para sempre», garante. O que fica igualmente no álbum das recordações é o povo. Tímido, afetuoso, simpático. Apesar da barreira da língua, apesar do pouco tempo de convívio. «O olhar do povo amistoso e, ao mesmo tempo, tímido. Fico com a ideia que o povo é feliz à sua maneira», comenta. Mesmo sem saber nada do que se passa para lá das suas fronteiras. «A população desconhece completamente o que se passa fora do país, todas as informações são manipuladas pelo regime», revela.
E um silêncio desconcertante. «Não vi um papel no chão, também não vi lojas, cafés, pastelarias. Não existe publicidade nas ruas. É tudo muito silencioso, não se ouvem carros a buzinar, nada. As pessoas passam por nós e quase não as sentimos. Um silêncio constrangedor para quem está habituado ao ruído das nossas ruas», conta.
«A realidade é incomparável com qualquer outro país do mundo. É um país que parou no tempo, estradas de terra, bicicletas como meio de transporte, e um sistema feudal na agricultura»
Os edifícios que observou estavam praticamente vazios. «A cidade parece um museu vivo em que tudo parece ensaiado e representado», diz. E o clima tenso com os Estados Unidos não passava despercebido. «Há, sem dúvida, uma grande propaganda do governo norte-coreano contra os Estados Unidos. Tive a oportunidade de comprar um jornal local em inglês que fala muito sobre as tensões entre os dois países, sempre com a ideia que se o país for atacado destruirá os Estados Unidos, sempre a propaganda do Estado a enaltecer o seu poderio contra o grande invasor.»
Não é fácil entrar no país mais fechado do mundo. Não há visto no passaporte, as autoridades dão um cartão turístico com foto e revistam todo o material. Livros económicos, políticos, sociais, que possam perturbar a ideologia do regime, não entram. Lentes fotográficas com mais 150 mm também não. Os telemóveis são passados a pente fino.
O atleta português esteve dois dias em Seul, na Coreia do Sul, viajou até Dandong, no nordeste da China, que faz fronteira com a Coreia do Norte, juntou-se ao seu grupo de atletas estrangeiros – australianos, ingleses, franceses, holandeses, húngaros – e chegou à fronteira do país. Revista de duas horas, estação de comboios, viagem de sete horas até à capital da Coreia do Norte, e um cenário rural ao redor. «A realidade é incomparável com qualquer outro país do mundo. É um país que parou no tempo, estradas de terra, bicicletas como meio de transporte, e um sistema feudal na agricultura», diz.
Entrada na capital, guias norte-coreanos à espera, transporte para um hotel bem localizado e confortável, mas sem acesso à Internet e pouca opção de comida no restaurante. Malas no quarto, hora de conhecer a capital da Coreia do Norte, de forma controlada. Sempre em grupo. «Sentimos uma falta de autonomia para fazer o que se quiser, ou seja, liberdade na escolha dos percursos. Inibição de fotografar sem perguntar se o podemos fazer».
Álvaro Leite saiu da Coreia do Norte com 3 horas e 23 minutos na maratona de 42 quilómetros, mas sem saber a sua classificação. A lista foi apenas fornecida aos atletas profissionais.
Sair do país também teve as suas condicionantes. Sete horas de comboio até Dandong e duas horas de interrogatórios e revista aos telemóveis, às máquinas fotográficas, ao material, antes de dizer adeus à Coreia do Norte.
A maratona de Pyongyang teve as suas particularidades para um atleta que já correu na muralha da China, no Polo Norte, no deserto de Atacama, nos Himalaias, em Machu Picchu, em Israel, e participou em dois Ironman na Austrália e na Alemanha. Partida para 1200 atletas, 400 dos quais estrangeiros, tempo estipulado de quatro horas para correr os 42 quilómetros, e depois desse tempo, os portões do estádio da capital da Coreia do Norte fecharam-se e muitos atletas tiveram de desistir.
Álvaro Leite saiu da Coreia do Norte com 3 horas e 23 minutos na maratona de 42 quilómetros, mas sem saber a sua classificação. A lista foi apenas fornecida aos atletas profissionais. «Não fornecem os dados, é tudo muito vago, diferente de todas as outras provas que corri anteriormente. Fica tudo em segredo, dizem que é para nos proteger.»
«O que mais recordo desta viagem são os olhares do povo que sem saber nada de nós e do nosso mundo nos recebe com um sorriso nos lábios», diz Álvaro Leite.
O vencedor foi um norte-coreano, um dos melhores corredores do país, com 2 horas e 15 minutos, e ganhou 10 mil euros. Álvaro teve apenas a indicação de que estaria entre os 20 melhores atletas estrangeiros.
Já fora do país, no regresso a Portugal, com várias escalas pelo meio, é que teve conhecimento da posição correta: 31.º lugar na classificação geral. «Esta maratona não é para bater recordes, pois não é uma prova fácil, tem algumas subidas, poucos abastecimentos, cheguei a estar três minutos à espera que fossem buscar água, pois não tinham mais nada». Depois da prova, duche rápido no hotel, almoço num restaurante típico, e espetáculo de danças tradicionais por estudantes locais.
Mais do que uma prova, uma experiência, e o 99.º país na sua lista. «Nunca tinha visto um país com tantas diferenças culturais em todos os sentidos, completamente diferente do que estava habituado.» Mais do que o tempo e um honroso 31.º lugar, o ambiente que absorveu, sensações, emoções, e histórias para contar. «O que mais recordo desta viagem são os olhares do povo que sem saber nada de nós e do nosso mundo nos recebe com um sorriso nos lábios.» Essa é uma imagem que fica para sempre.