Há muitos, muitos anos, porque era preciso criar um lugar para certos dirigentes obsoletos que não podiam nem queria voltar ao seu lugar de origem, nasceu o cargo de Assessor.
Como era praticamente impossível manter os senhores assessores sentadinhos nos seus locais de trabalho, para além do tempo destinado à leitura do Diário de Notícias, do Jornal da Madeira e da pausa para o café, foi necessário inventar um mecanismo de controlo. Assim nasceu o Kélio, o António Kélio Variações, esse malfadado mecanismo de registo biométrico que dá a ilusão de que certos entes trabalham efetivamente sete horas por dia.
Quando se pensava que os passeiozinhos em horário de serviço seriam completamente contrariados, eis que alguns funcionários encostados, especializados ou com isenção de horário se lembraram de que só precisariam de estar no serviço às 9h, às 12.30h, as 14h e às 17:30h, fazer o registo e ir de volta à sua vidinha dupla. Para todos os efeitos, os quatro registos diários são a prova de que as sete horas legais de trabalho diário foram cumpridas.
Desde então, é ver tantas alminhas a picar o ponto às 9 e a sair logo de seguida, a caminho dos seus “trabalhinhos” extraordinários em Clubes, nas Associações, no ensino superior e até nos seus gabinetes privados. Alguns até regressam a casa para colocar no estendal a roupa que, entretanto, ficou na máquina a lavar. Outros passam o dia a servir de motorista dos seus rebentos. Vão buscar os meninos à escola, vão levar os meninos à avó, vão buscar os meninos (já almoçados) à avó e vão levar os meninos à explicação, ao ténis, à natação e ao Inglês. Tudo isto em pleno horário de serviço.
Mais sorte têm aqueles que por graça do destino não conhecem o Sr. António Kélio Variações, como é o caso dos desterrados da ceratitis capitata e da cochonilha branca (viva a liberdade!) ou daqueles que já o conheceram um dia e não gostaram, como é o caso de certa classe malabarista que consegue a proeza de trabalhar simultaneamente na Cruz de Carvalho e noutros espaços mais bem pagos, onde é possível, com elevada taxa de sucesso, encontrar espinhas nunca antes detetadas, entaladas em gargantas que optaram por não se calar. Como é o caso de certas dependências da secretaria do genro, do outro que nem é quente nem é frio, onde nem sequer é preciso aparecer ao serviço e a dispensa do registo biométrico tem contornos altamente adulterados.
Não nos podemos esquecer do Campo da Barca, onde, dizem, trabalham os verdadeiros Veteranos do engana-pica-ponto. Há inclusivamente quem se dê ao luxo de deixar o carro ligado à porta do serviço e ir num pé e vir noutro efetuar o registo biométrico e bazar dali, sabe-se lá para onde.
Para quando uma maior dignidade no registo de assiduidade dos funcionários? É que pelos vistos, o Kélio tem muitas nuances, algumas delas muito duras de assistir por quem tem efetivamente de trabalhar e mostrar trabalho feito todos os dias.
Quinta-feira, 23 de Janeiro 2020 23:07
Texto e título enviados pelo autor. Ilustração CM.