Comboio dos esquecidos

Atravessando a poeira dos tempos, aventurei-me em mais uma das minhas viagens de descoberta, em busca da história e conhecimento sobre a nação. Eis que aterrei com algum sobressalto ventoso, num aeroporto que parece não querer ir à bola com o novo nome que lhe querem dar. Indicaram-me um autêntico caixote arquitectónico, ali para os lados de uma tal de Penteada. Segundo consta, contém no seu interior o fabuloso conhecimento de quase tudo o que se passou nesta região insular.

Embrenhei-me nas buscas de comboios! Imaginem! Esta ilha teve comboios! E agora tenho o prazer de partilhar o que estava já meio encoberto por camadas de pó e mofo bafientos. Reza a história da ilha das flores, em pleno Atlântico plantada, mais conhecida por Madeira, que em finais do Século XIX foi instalada uma via férrea. Devido ao acentuado relevo a transpôr, foram chamados à ilha ilustres técnicos alemães, com provas dadas em engenharia de comboios de montanha. Dessa forma foi escolhido o sistema de cremalheira alemão Ringenbach, assim como locomotivas e carruagens também de origem alemã.



Mais precisamente em 1893, com pompa, circunstância e demais salamaleques, foi inaugurado o serviço ferroviário, com um comboio de cremalheira, entre o centro do Funchal e a freguesia do Monte. Diga-se de passagem que o designado Caminho de Ferro do Monte, sofreu de diversas vicissitudes a longo da sua existência. Era o chamado transporte dos ricos e finórios. Vivia à custa da nata oriunda do norte da Europa, que para fugir aos rigores gélidos do Inverno, e das maleitas respiratórias, se vinha refugiar nas quintas e hotéis madeirenses.

Em 1912 a linha alcança finalmente o Terreiro da Luta, onde fora construído um esplendoroso restaurante, ao estilo dos chalets suíços. Os mais sonhadores ainda falaram numa extensão da linha até ao Pico do Areeiro. Falou-se também de uma continuação até Santana, as tudo isto não passou do papel.

Em 1914 estoira a Primeira Grande Guerra e durante quatro anos lá se foi a clientela. Viveram-se na ilha tempos de penúria, safo para aqueles que tiravam da terra o seu sustento. Finda a guerra em 1918, os comboios retomam os serviços. A 10 de Setembro de 1919, ao final da tarde, a explode a caldeira da quarta locomotiva. Veio a descobrir-se defeito de fabrico, afinal os germânicos não eram assim tão bons. Serviços suspensos até Fevereiro de 1920. A clientela mais desfavorecida só costumava usar o comboio em dia de romaria de Nossa Senhora do Monte, à conta de preços especiais em dia de festa. Favorzinhos e borlas pelos vistos já eram costume em tempos idos.


A administração da companhia ferroviária acabou por ir bater à porta da Câmara do Funchal, pedinchar subsídio para colmatar os deficientes lucros. Em 1925 foi comprada na Suiça a quinta locomotiva da companhia, de engenharia mais sofisticada que a alemã. O preço do carvão estava em alta e na capital do reino já se falava em electricidade na ferrovia. Mas as cabecinhas marroncas da "administração ilhoa" fizeram questão de chumbar a conversão do comboio, de carvão para electricidade.

Em Janeiro de 1932, mais um valente cagaço para a ferrovia funchalense. Um dos comboios descarrila logo abaixo do Terreiro da Luta. Valeu-se uns eucaliptos, senão lá ia o material para o leito do ribeiro! Em 1938 circulou pela primeira vez um comboio diesel em terras continentais portuguesas. O marronco ilhéu insistia em fazer fumo de carvão! E como se não bastasse o primeiro embate bélico, eis que em 1939 estoira mais um conflito mundial, deitando por terra as esperanças dos comboios madeirenses.

Em 1943 foi decretada a falência da companhia e todo o material foi vendido para sucata. Salvou-se o património edificado: três estações e a ponte. A mais bela das três, a do Terreiro da Luta continua viva, se bem que pudesse ter mais dinamismo. A estação do Monte esteve moribunda nas últimas décadas, até que o município funchalense finalmente se decidiu pela compra e restauro. Restauro esse que se adivinha desastroso, tendo em conta o marronquismo exacerbado das cabeças governantes. O egocentrismo impede aqueles entes - sedentos de poder - de terem a humildade de consultar as engenharias e arquitecturas conhecedoras do processo.


A estação do Pombal, a primeira a ser edificada e a mais próxima do centro do Funchal, grita desalmadamente por socorro! Um espaço de memória colectiva, um potencial museu, combinado com restauração e hotelaria exclusivas, definha a cada dia que passa. Mesmo deficitário, a Madeira teve comboio! Serviu a classe média-alta e os ricos! Ironicamente é essa classe e essa riqueza, lacónica de cultura, que deixa morrer uma entre tantas memórias colectivas, que fizeram parte da história do arquipélago. Mas não descansem os caros leitores, pois o problema é transversal a todo o território português! Porta sim, porta sim senhor, são inúmeros os casos de desleixo para com os valores da história, cultura e património da nação.

Caímos na ilusão de apanhar o comboio europeu, na ilusão da vanguarda… a triste sina é que em vez de estarmos no comboio, somos a lanterna vermelha que assinala a sua cauda.

Nota: texto conforme acordo ortográfico de 1945