Velhos são os trapos!



O João trabalha há menos de dois meses numa empresa de distribuição alimentar. Assinou um contrato a termo, mas acha que os patrões estão a gostar do seu trabalho. Nunca faltou, nunca chegou tarde, sai sempre depois da hora, e nunca deixou por terminar o que tem em mãos, e por isso espera dali a 4 meses passar a efetivo.
O ordenado mínimo que ganha não é muito, mas dá para comer e alimentar com uma sonda o pai acamado há mais de dois anos. O velhote fora vítima de um AVC que o deixou paralisado numa cama com uma reforma de 325 euros que pouco mais dá para os medicamentos.
Todos os dias, com o escurecer do dia, o João apanhava o autocarro para o Jamboto, e enquanto olhava para as luzes da rua pelo vidro embaciado, recordava com um sorriso as malhas que apanhava em pequeno pelo simples facto do velhote chegar a casa perdido de bêbado.
E enquanto o autocarro subia Santo António, lembrou-se do dia em que foi chamado ao hospital por uma Assistente Social, que até o tratou como um criminoso, e o acusou de abandono por não ter vindo buscar o pai quando este teve Alta Hospitalar dos Marmeleiros.
Lembrava-se, como se fosse hoje, de, em vão, ter tentado explicar que a mãe já cá não estava, que era filho único, que na altura estava desempregado e que não tinha meios para cuidar do velhote. Na memória ficou a imagem de uma Assistente Social fria e implacável a insistir para que ele que não se preocupasse porque iria ter ajuda da Segurança Social, nos banhos, e nas refeições, e que por isso, tudo iria correr bem, e que o pai iria viver muitos anos.
E ali estava ele, com um velhote em coma nos braços porque não havia vagas em lugar nenhum. Revoltava-o saber que a enfermeira Maria tinha conseguido internar o pai no João de Almada, que o Eng. Fernando tinha metido uma cunha para o Lar de Santo António, que o Dr. Gomes Silva internou a avó numa IPSS, e que nem sequer pagava nada, e que a Santa Casa da Misericórdia em Machico era impossível porque era para gente rica.
Tudo isto revoltava-o porque durante décadas disseram-lhe que ele fazia parte do Povo Superior, que a Madeira tinha o melhor sistema de saúde do País, o melhor hospital, os melhores médicos, as melhores enfermeiras, as melhores assistentes sociais, e que tudo isso era graças à Autonomia conquistada a ferros pelos melhores políticos do mundo.

Estava a chegar ao destino, tocou a campainha, e saiu do autocarro. Subiu os 142 degraus do beco onde morava, abriu a porta, meteu a sopa no micro-ondas, lavou a seringa da sonda, e dirigiu-se ao quarto do pai que emanava um misto de urina e fezes duma fralda a abarrotar. Sorriu, chamou-o, mas ele não respondeu. Estava morto.

E o João, triste, suspirou de alívio.

Obs.: quando o poder decidir ser moralista que observe como deixa o povo, dia-a-dia, com as suas decisões e as suas chafurdices.