Na última campanha eleitoral, para a escolha de nosso mandatário máximo, padecemos com uma profusão de notícias falsas, meias-verdades dissimuladas, deturpações grosseiras do factual, que interferiram, inegavelmente, no resultado que aflorou das urnas no dia 28 de outubro do corrente ano. Neologismos como “pós-verdade” e “autoverdade” resultaram do fenômeno, senão inédito, ao menos não verificado antes em tão insidiosa proporção entre nós.
No entanto, não podemos reclamar de originalidade nesse quesito. Somos seres, como já denunciara Aristóteles, afeiçoados ao mimetismo, e no caso brasileiro, a macaquear o que vem de fora, sempre o superestimando em detrimento do produto nacional.
O fenômeno da mentira, que hoje se apresenta sob as vestes da expressão “fake news”, esteve abusivamente presente na campanha à presidência dos EUA, em 2016. Tanto lá, como aqui, se mostrou uma “estratégia” fundamental e determinante para conduzir os respectivos candidatos à vitória.
Como nos esclarece José Antonio Zarzalejos:
Certamente, na política, a mentira ou a meia-verdade sempre foram recursos manejados com desenvoltura, mas agora, a resposta ao status quo político e econômico introduziu elementos sentimentais, emotivos, em suas falsas mensagens, enriquecendo-as de uma força arrasadora. (José Antonio Zarzalejos, 2017).
Neste momento da vida nacional, me deparei com um texto atualíssimo do nosso singular Rui Barbosa (1849-1923), uma das mentes mais brilhantes, das forjados entre nós, e com vultosa atuação na vida política, social e cultural brasileira, tendo iniciado sua militância na cena pública no segundo reinado, estendo-a até a primeira República. O aludido texto foi publicado em 1919, sob um título apropriado para aquele momento e extremamente oportuno para o atual: “O Reino da Mentira”, do qual reproduzo o trecho abaixo:
Mentira tôda ela. Mentira de tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu, onde, segundo Padre Vieira, que não chegou a conhecer o Dr. Urbano dos Santos, o próprio sol mentia ao Maranhão, e diríeis que, hoje, mente ao Brasil inteiro. Mentira nos protestos. Mentira nas promessas. Mentira nos programas. Mentira nos projetos. Mentira nos progressos. Mentira nas reformas. Mentira nas convicções. Mentira nas transmutações. Mentira nas soluções. Mentira nos homens, nos atos e nas cousas. Mentira no rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Mentira nos partidos, nas coligações e nos blocos. Mentira dos caudilhos aos seus apaniguados, mentira dos seus apaniguados aos caudilhos, mentira de caudilhos e apaniguados à nação. Mentira nas instituições. Mentira nas eleições. Mentira nas apurações. Mentira nas mensagens. Mentiras nos relatórios. Mentira nos inquéritos. Mentira nos concursos. Mentira nas embaixadas. Mentira nas candidaturas. Mentiras nas garantias. Mentira nas responsabilidades. Mentira nos desmentidos. A mentira geral. O monopólio da mentira. Uma impregnação tal das consciências pela mentira, que se acaba por se não se discernir a mentira da verdade, que os contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes, ao cabo, muitas vêzes não sabem se estão, ou não estão mentindo. Um ambiente, em suma, de mentiraria, que, depois de ter iludido ou desesperado os contemporâneos, corre o risco de lograr ou desesperar os vindouros, a posteridade, a história, no exame de uma época, em que, à fôrça de se intrujarem uns aos outros, os políticos, afinal, se encontram burlados pelas suas próprias burlas, e colhidos nas malhas da sua própria intrujice, como é precisamente agora o caso. Já se entoou no parlamento republicano o panegírico do jôgo. Já se lavrou na imprensa da atualidade a apologia da perfídia. Ainda não se ensaiou, numa tribuna ou na outra, a glorificação da mentira. Mas há de vir. Há de estar próxima. Já tarda. Não se concebe que se haja demorado tanto. É a justiça da nossa época a si mesma. Pelo hábito de preterir a tudo, acaba ela sem fim, destarte, preterindo a si própria.
Conferência pronunciada na Associação Comercial do Rio de Janeiro, em 08 de março de 1919, por ocasião da campanha presidencial em que teve como antagonista o Senador Epitácio Pessoa. Rui venceu em todas as grandes capitais e cidades do Brasil. (Rui Barbosa. Campanhas Presidenciais, 2ª edição, Livraria Editora Iracema, São Paulo, 1966).
Reitero: atualíssimo, impressionante e premonitório texto do inestimável Rui Barbosa.
Em constatação profética, para nós brasileiros, José Antonio Llorente anuncia em 2017:
O panorama político e social dos próximos meses será marcado por esta conjuntura da pós-verdade, na qual o objetivo e o racional perdem peso diante do emocional ou da vontade de sustentar crenças, apesar dos fatos demonstrarem o contrário.
(…)
A divulgação de falsas notícias conduz a uma banalização da mentira e, deste modo, à relativização da verdade. O valor ou a credibilidade dos meios de comunicação se vêem reduzidos diante das opiniões pessoais. Os acontecimentos passam a um segundo plano, enquanto o “como” se conta a história ganha importância e se sobrepõe ao “o quê”. Não se trata, então, de saber o que ocorreu, mas de escutar, assistir, ver, ler a versão dos fatos que mais concorda com as ideologias de cada um. (José Antonio Llorente. A era da pós-verdade: realidade versus percepção. Uno, n.º 27, 2017).
Nesse mesmo diapasão ratifica José Antonio Zarzalejos:
O populismo de hoje, e de sempre, maneja mais com as persuasões emocionais do que com critérios de racionalidade e de veracidade. O rigor e o populismo são conceitos contraditórios. (José Antonio Zarzalejos. A era da pós-verdade: realidade versus percepção. Uno, n.º 27, 2017).
Em face desse quadro desesperançado haverá algum antídoto? Esboçaremos uma possível resposta nas linhas que se seguem.
Um povo se constitui, entre outras coisas, pelo seu passado comum e pelas imagens que forma sobre si mesmo, as quais, em boa medida, pressagiam e naturalizam seu próprio caminho, suas escolhas, seu destino.
Um dos bordões, reiteradamente repetidos entre nós, com foros de verdade incontrastável, é o seguinte: “O Brasil não tem memória”! O quanto de verdade emana dessa assertiva? Ao meu sentir, me perdoem se pareço pessimista ou pernóstico, há muito de veracidade nessa constatação, lamentavelmente.
Devotamos, enquanto sociedade e indivíduos, um leviano desprezo pelo passado, por sua história e por seus personagens. Ornamos o presente com uma auréola de louvor e exaltação. Não é sem propósito que aviltamos o significado do vocábulo “museu”, impingindo-lhe um sentido pejorativo de algo velho, obsoleto, ultrapassado, decrépito.
Os jovens e, penso que o mesmo se aplica às jovens sociedades, como a brasileira, têm suas vidas aferradas ao presente, um presente que lhes parece eterno e imutável. Nutrem, nesta perspectiva, um estrepitoso descaso e desdém pelo passado. E o futuro, é situado num distante e longínquo porvir, pejado de grandes e dadivosas promessas. Como diria La Rochefoucauld “A juventude é uma longa intoxicação: ela é a razão em estado febril”.
Vem-me à memória um trecho do livro do jusfilósofo francês François Ost:
O presente, sempre fugitivo, constitui-se atualmente como principal representação do tempo, símbolo de uma sociedade que perdeu sua crença na história. Como se o passado, definitivamente terminado, nada mais tivesse a dizer, e que o futuro, decididamente demasiado incerto, não exigisse ser construído a partir de hoje. Como se o passado não exigisse mais ser interpretado à luz das exigências do futuro enraizado na experiência do passado. Mergulhados nesta brecha do presente, nossas sociedades parecem órfãs da história, privadas de duração, dedicadas unicamente ao frenesi do instante, condenadas a viver no ritmo sôfrego da atualidade. (François Ost. O Tempo do Direito. EDUSC, 2005).
O intuito que me move, todavia, não é a glorificação tradicionalista e conservadora de um passado que não, necessariamente, deve ter sua sobrevida assegurada no presente. Não comungo de um retrógrado e nefando conservadorismo moral e de costumes, que vem se espraiando pela sociedade brasileira, em aterrador processo de metástase, orientado por uma ideologia totalizante e avassaladora, recoberto por um viés teológico e teocrático.
Por outro lado, uma sociedade não pode rechaçar, impunemente, seu passado, que é a argamassa com a qual edifica os alicerces de seu presente e se erguem as paredes para construção de seu futuro. No estou a propor um culto nostálgico e sublimado ao passado, mas um olhar crítico e bifronte: olhar para o passado para melhor enxergar o presente e vislumbrar o futuro, eis a questão, eis o desafio.
A história nos propicia uma análise contextual da realidade que nos circunda e nos possibilita buscar no passado as causas das aflições do presente. Estabelece, por conseguinte, a necessária ligadura entre passado e presente.
O grande filósofo alemão Leibniz asseverou que: “As origens das coisas presentes é encontrada nas coisas passadas. Uma realidade nunca é compreendida melhor do que por suas causas”.
Não destoa dessas colocações o historiador francês contemporâneo François Dosse:
Além da busca da verdade que conduz o gênero histórico a dissociar-se da ficção, é a uma procura de explicação do caos, a uma tentativa de ordem explicativa que os historiadores se entregam desde a Antiguidade. A história identifica-se com essa investigação das causas desde Políbio, no século 2.º a.C.
Novamente me socorro das penetrantes palavras de François Ost:
Mas nada de mais frágil que esta aliança entre o passado e o futuro; a “crise de cultura” propicia o cisma entre tempos, que parecem nada mais ter a se dizer; um passado repentinamente tornado estranho, um futuro opaco e improvável – e entre os dois: um presente reduzido às pancadas do instantâneo, aos sobressaltos da urgência, à insignificância do dia-a-dia. Igualmente trata-se de um lance ético – e logo político e jurídico – de manter as duas extremidades da corrente, garantir que se prossiga o diálogo entre a memória e a expectativa, pois “uma sociedade deve ser capaz de história”, escrevia Hegel, ao qual Durkheim fazia eco: “Sem duração, não há sociedade que possa ser consistente.
Porque será que acometeu a muitos tiranos e seu acólitos, mundo afora e em variadas épocas, atentar contra o passado, senão para reescrevê-lo ao capricho de seus interesses? Assistimos a emergência de um “revisionismo histórico” que nega o holocausto na Europa e, entre nós, a ditadura militar.
Como algumas obras podem se mostrar tão atuais, para nosso desalento? Uma delas tem ocupado minha atenção, hodiernamente, pelas lições que projeta, do longínquo ano 1949, para o nosso presente. Estou a me referir ao romance de George Orwell, 1984.
No aludido romance somos apresentados ao Ministério da verdade, cuja principal função é reescrever o passado, amoldando-o aos interesses do partido e do tirano, para tanto, apagando “fatos e personagens indesejáveis”, promovendo, assim, um oportuno revisionismo histórico.
O Ministério da Verdade — Miniver, em Novafala — era extraordinariamente diferente de todos os outros objetos à vista. Era uma enorme estrutura piramidal de concreto branco cintilante, erguendo-se, terraço após terraço, trezentos metros espaço acima. Do lugar onde Winston estava mal dava para ler, escarvados na parede branca em letras elegantes, os três slogans do Partido:
GUERRA É PAZ
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
IGNORÂNCIA É FORÇA
Comentava-se que o Ministério da Verdade continha três mil salas acima do nível do solo e ramificações equivalentes abaixo. (George Orwell. 1984. Companhia das Letras, 2009).
No excelente posfácio do escritor norte-americano Thomas Pynchon ao esse romance, colhe-se essa percuciente análise:
É relativamente fácil lidar com a memória, do ponto de vista totalitário. Sempre há alguma agência como o Ministério da Verdade para negar as lembranças de alguém, para reescrever o passado. Em 2003, tornou-se comum que os funcionários do governo ganhem mais que nós para aviltar a história, trivializar a verdade e aniquilar o passado diariamente. Aqueles que não aprendem com a história costumavam ter que revivê-la, mas isso foi apenas até que os que estão no poder pudessem encontrar um modo de convencer a todos, inclusive a eles mesmos, de que a história nunca aconteceu, ou que aconteceu de uma maneira que servisse melhor aos seus propósitos — ou, ainda melhor, de que a história afinal não tem importância senão como um tolo documentário de TV destinado a uma horinha de entretenimento. (George Orwell. 1984. Companhia das Letras, 2009).
Foi publicado no último dia 27/10, no site “Justificando”, um artigo de Vasconcelo Quadros, com a seguinte chamada: “Parlamentares e especialistas ligados à educação consideram projeto “estratégico” para governo, que teria como meta impor versão dos militares sobre golpe de 1964 e regime militar” e no miolo de seu texto:
Uma vez aprovado, o Escola sem Partido abriria caminho para uma reforma profunda na educação, com a substituição dos conteúdos dos livros didáticos e a implantação de novas regras de acesso à cátedra cujo objetivo seria por em curso uma revisão na história da ditadura (1964-1985), que seria recontada com a inclusão de uma versão mais palatável aos militares.
Pelo o que vemos o futuro presidente e seus asseclas estão lendo e ponto em prática a distopia de George Orwell: “uma revisão da história da ditadura (1964-1985), que seria recontada com a inclusão de uma versão mais palatável aos militares.”
Gostaria de fazer menção a um historiador contemporâneo, pelo qual nutro grande apreço, o espanhol Joseph Fontana. De seu livro “A História dos Homens”, pinço o seguinte trecho:
A história de um grupo humano é sua memória coletiva, e a seu respeito, cumpre a mesma função que a memória pessoal em relação a um indivíduo: dar-lhe um sentido de identidade que o faz ser ele mesmo e não outro.
(…)
Virar as costas para a história nesse momento é uma atitude suicida. Queiramos ou não, a história está presente em nosso contexto e é uma das fontes mais eficazes de convicção, de formação de opinião em matérias relativas à sociedade.
Acredito que a leitura de obras históricas, idôneas, poderia contribuir para a formação de uma consciência crítica, fundamentada e abalizada, em matérias relativas à sociedade, para confrontar os falseamentos, adulterações e distorções da realidade que nos circundam.
É preciso resgatar as lições do historiador francês do século XIX Jules Michelet: “Aquele que quiser se circunscrever ao presente, ao atual, não compreenderá o atual”.
Apreendamos a lição trazida por Timothy Snyder:
A história não se repete, mas ensina. Enquanto os Pais Fundadores dos Estados Unidos debatiam a Constituição americana, aprendiam com a história que conheciam. (Timothy Snyder. Sobre a tirania: Vinte lições do século XX para o presente. Companhia das Letras, 2017).
Contudo, o antídoto não se restringiria ao conhecimento histórico. Talvez se fizesse necessário um programa mais amplo e complexo: um reencontro com as humanidades, ou seja, com estudos que tenham o ser humano como objetivo central, sobretudo nas vertentes filosóficas, históricas, literárias e das artes.
No entanto, a camarilha que tomou de assalto o poder, “democraticamente” pelas urnas, principalmente seu capitão, nutre um estrondoso desdém para com as humanidades, em consonância com aquilo que denunciava a professora Leyla Perrone-Moises, na edição da Folha de São Paulo do dia 30 de junho de 2002:
Os extraordinários avanços científicos e tecnológicos do século passado, recebidos não apenas como valiosos, mas também como prioritários, relegaram os estudos humanísticos a um lugar secundário. A globalização econômica e a consequente submissão de todos os países à lógica do mercado tendem agora a desferir o golpe definitivo contra esse tipo de estudo. Os tomadores de decisões -políticos, economistas, cientistas, tecnocratas- perguntam cada vez mais: para que servem as humanidades? Submetidas ao critério de uma utilidade imediata, identificada com um bem-estar do homem baseado apenas no acesso às conquistas da ciência e da tecnologia, assim como no bom funcionamento do mercado, as humanidades passaram a ser vistas como um luxo, uma perfumaria, uma inutilidade.
Não obstante é preciso ir à luta. Timothy Snyder nos convoca:
Alguém precisa tomar a frente. É fácil acompanhar a maioria. Pode parecer estranho fazer ou dizer algo diferente. Mas sem essa inquietação não existe liberdade. No momento em que você dá o exemplo, quebra-se o encanto exercido pelo statu quo, e outros o imitarão. (Timothy Snyder. Sobre a tirania: Vinte lições do século XX para o presente).
Timothy Snyder dá seu receituário para atravessarmos os “tempos brutos” que nos assola:
Evite proferir as frases que todo mundo usa. Reflita sobre sua maneira de falar, mesmo que apenas para transmitir aquilo que você acha que todos estão dizendo. Faça um esforço para afastar-se da internet. Leia livros.
(…)
Reflita sozinho sobre as coisas. Dedique mais tempo aos artigos longos. Prestigie o jornalismo investigativo assinando jornais e revistas. Perceba que parte do que a internet oferece está ali para enganá-lo. Descubra páginas na rede que investigam campanhas de propaganda (algumas dessas campanhas vêm do exterior). Responsabilize-se pelo que você comunica às pessoas. (Timothy Snyder. Sobre a tirania: Vinte lições do século XX para o presente).
Timothy Snyder nos incita e nos ensina:
Há mais de meio século, os romances clássicos sobre o totalitarismo advertiram quanto à dominação das telas, à supressão dos livros, ao estreitamento do vocabulário e às dificuldades subsequentes de pensar. Em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, publicado em 1953, bombeiros procuram e queimam livros, enquanto a maioria dos cidadãos assiste à televisão interativa. Em 1984, de George Orwell, publicado em 1949, os livros são proscritos e os televisores são, ao mesmo tempo, receptores e transmissores, o que permite ao governo vigiar os cidadãos constantemente. Em 1984, a linguagem dos meios visuais é altamente limitada, de modo a negar ao público os conceitos necessários para refletir sobre o presente, recordar o passado e antever o futuro. Um dos projetos do regime consiste em limitar a linguagem ainda mais, eliminando um número cada vez maior de palavras a cada edição do dicionário oficial. Olhar para telas talvez possa ser inevitável, mas o mundo bidimensional faz pouco sentido, a menos que possamos recorrer a um arsenal mental formado em outro lugar. Quando repetimos as mesmas palavras e frases que aparecem nos meios de comunicação diários, aceitamos a ausência de um quadro referencial maior. Dispor desse quadro referencial exige mais conceitos, e ter mais conceitos exige leitura. Por isso, afaste as telas de sua vida e cerque-se de livros. Os personagens dos livros de Orwell e Bradbury não podiam fazer isso — mas nós ainda podemos. (Timothy Snyder. Sobre a tirania: Vinte lições do século XX para o presente).
O que ler para “resistir em tempos brutos”? Timothy Snyder tem suas indicações, com as quais concordo em grande parte, descontando o fato de que escreveu tendo em mira o leitor norte-americano. Aos livros por ele sugeridos eu acrescento outros, tais como:
– Os romances de Machado de Assis, com preferência para Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro;
– Os romances de Graciliano Ramos, dentre os quais Vidas Secas, São Bernardo e o memorialístico e imprescindível Memórias do Cárcere;
– Sagarana e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa;
– Os livros das Memórias de Pedro Nava;
– Os romances de Milton Hatoum, dentre os quais, Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte;
– A poesia de Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa;
– Dois livros do Sociólogo Jessé Souza: A Elite do Atraso e A Classe Média no Espelho.
Lista, evidentemente, arbitrária e limitativa, mas quero crer que já é um bom começo.
Vamos às sugestões e ponderações de Timothy Snyder:
Qualquer bom romance estimula nossa capacidade de pensar sobre situações ambíguas e de julgar as intenções alheias. Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, e A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, talvez sejam adequados a nosso momento. O romance Não vai acontecer aqui, de Sinclair Lewis, talvez não seja uma grande obra de arte. Complô contra a América, de Philip Roth, é melhor. Um romance conhecido por milhões de jovens americanos e que oferece um relato de tirania e resistência é Harry Potter e as relíquias da morte, de J. K. Rowling. Se você, seus amigos ou seus filhos não o entenderam assim da primeira vez, vale a pena lê-lo de novo. Cito a seguir alguns textos políticos e históricos em que se baseiam os argumentos apresentados aqui: “A política e a língua inglesa”, de George Orwell (1946); A linguagem do Terceiro Reich, de Victor Klemperer (1947); Origens do totalitarismo, de Hannah Arendt (1951); O homem revoltado, de Albert Camus (1951); Mente cativa, de Czesław Miłosz (1953); (Timothy Snyder. Sobre a tirania: Vinte lições do século XX para o presente).
Causa-me espécie ver amigos, contemplados por inúmeras láureas acadêmicas, gozando de indubitável reconhecimento profissional e sucesso mundano, lendo, por exemplo, as “memórias” de um notório e execrável algoz, lacaio da ditadura militar, que reescreve a história a seu talante, como se de suas nauseabundas páginas, assomassem a irretorquível verdade histórica.
Um das conclusões a que cheguei, depois do fastidioso processo que conduziu à eleição do Senhor Bolsonaro, sem nenhuma base mais confiável do que minha própria intuição, foi a de que não basta uma formação escolar de qualidade, para o desenvolvimento do senso crítico. Conheço renomados médicos, advogados, jornalistas e engenheiros que se mostraram suscetíveis as mais comezinhas adulterações da verdade dos fatos, repetindo, servilmente, as “notícias” veiculadas pela grande imprensa, circulando fake news como se fossem irrefragáveis retratos da realidade.
Como disse acima: talvez um bom começo fosse fazer a leitura, na medida do possível, das obras citadas!
Sábado, 24 de Agosto de 2019 09:23
Texto e título enviado pelo autor. Imagem CM.
Aviso do autor: texto de Carlos Eduardo Araújo, professor universitário e mestre em Teoria do Direito (PUC-MG- Brasil).