O mundo pós-pandémico será propício ao crime organizado. Se os Estados tardarem na resposta as máfias ocuparão o vazio.
11 de Abril de 2020, 7:00
Jorge Almeida Fernandes
Original: Time24News
Não bastava a pandemia. Os especialistas temem agora um novo surto criminal. As máfias têm uma longa experiência de tirar partido das crises e da fraqueza dos poderes públicos. Estamos perante um desafio político em grande escala. Se o Estado chega tarde na resposta à crise, as máfias antecipam-se e ocupam o terreno vazio. “Não há crise que não seja uma grande oportunidade para as máfias”, diz ao Repubblica o juiz Federico Cafiero de Raho, procurador antimáfia italiano.
Em Março, realizou-se na Suíça, uma reunião de 500 especialistas do crime organizado, que produziu um documento intitulado Crime e Contágio – O impacto da pandemia no crime organizado. Se o primeiro impacto criou dificuldades às máfias, o relatório dá conta das respostas do crime pelo mundo inteiro.
Da Itália aos Estados Unidos, do Brasil à Europa de Leste, os clãs mafiosos adaptam-se à emergência, visando alargar os seus apoios sociais e conquistar novos sectores de negócio, de preferência na economia legal. No primeiro momento, a política de confinamento criou-lhes problemas. Mas logo começaram a adaptar-se. Um dos primeiros alvos foi o tráfico de máscaras e ventiladores. Note-se que o sector sanitário, na Itália ou nos Estados Unidos, é uma das áreas prioritárias de investimento das máfias.
Praças vazias e ruas mais policiadas não são boas para os dealers da droga. Na Bósnia, o maciço negócio de roubo de automóveis entrou em crise. Lojas e restaurantes fechados não são bons para a extorsão de dinheiro. Na Itália ou nos EUA, designadamente em Nova Iorque, a droga passou a ser distribuída nas filas de espera dos supermercados ou por entrega doméstica. Mas o volume de negócios caiu. A suspensão da actividade desportiva põe em xeque o milionário negócio das apostas. As máfias americanas, diz a polícia, também sofrem um rombo com o encerramento dos casinos.
A reconversão não demorará. “Sempre que acontece uma coisa como esta [a pandemia], a máfia rapidamente corre a ocupar o vazio”, diz à Forbes um antigo mafioso. Vamos lá fazer quanto dinheiro pudermos, não interessa a quem burlamos e esta uma perfeita oportunidade.” A máfia nunca teve tabus humanitários.
“Agência de serviços”
O juiz De Raho está legitimamente preocupado. “Na Campânia [Nápoles], por exemplo, a Camorra já começou a distribuir bens alimentares às famílias em dificuldade. E antes do governo. Não porque tenhamos demorado muito. Mas porque os mafiosos são por definição velozes, não têm burocracia. E sabem que este é o momento justo para investir.”
Devemos deixar de lado os estereótipos dos filmes de gangsters. “As máfias nascem como agência de serviços. Proliferam onde o Estado não está presente ou chega atrasado”, diz De Raho. “Se o Estado não chega, chega o crime, disfarçado de benfeitor, dá-te de comer e depois cobra a conta”, alerta o presidente da Câmara de Nápoles, Luigi de Magistris.
As máfias servem-se do mal-estar social e das dificuldades económicas para manter a sua base social. É também uma forma de se fazerem “respeitar”. Não basta a violência, é-lhe necessário algum “consenso social”.
No Sul de Itália, um professor universitário apelou às várias máfias para que impusessem “nos vastos territórios por elas ocupadas, o confinamento obrigatório a todos os conterrâneos vindos do Norte”. No Rio de Janeiro, a principal “facção”, Comando Vermelho, impôs o confinamento em várias favelas. “Quem for apanhado na rua será castigado.”
A segunda vertente da estratégia das máfias é a conquista de sectores económicos legais. Tendo uma grande disponibilidade financeira, graças à droga, vão às empresas para as devorar. Os métodos são clássicos. Um procurador da Sicília dá um exemplo. A máfia oferece um empréstimo a um empresário em dificuldades. Este sabe quem oferece mas espera controlar a situação. Engano. Tempos depois, a máfia pede ao empresário que empregue certa pessoa, um pedido difícil recusar. A seguir, o intruso passa a dar ordens, o empresário diz que ele é que é o dono do negócio mas respondem-lhe: “Está enganado”. Passou a ser testa de ferro, um prestanome, na gíria italiana.
Não é só um problema italiano. “A máfia já infiltrou a economia alemã e tem uma forte implantação em Espanha, através de hotéis e do turismo”, lê-se numa reportagem do Politico.eu. A ‘Ndrangheta, originária da Calábria, infiltrou o Norte de Itália e opera à escala europeia, particularmente na Europa de Leste.
Como um vírus
O diário alemão Die Welt escreveu na quinta-feira: “A máfia está à espera dos euros que a Itália pede à UE”. A imprensa germânica mostrou-se dividida durante a semana. O tablóide Bild apelou à fraternidade italo-alemã e o semanário Der Spiegel condenou a atitude “mesquinha e cobarde” de Berlim perante a crise italiana.
Deixando de lado o chauvinismo do Die Welt, que exprime preconceitos conhecidos, a questão levantada deve fazer reflectir. Responde a correspondente do Repubblica em Berlim: “Die Welt não compreendeu nem quis compreender que, pelo contrário, são os fundos europeus que podem salvar a Itália de um assalto silencioso do crime organizado, que está a ser organizado nestas semanas de desespero.”
De Raho aborda o problema dum súbito afluxo de fundos. “As regras são necessárias. É importante fazê-las respeitar. Mas não devemos ter medo de confiar nas pessoas. Se tornas muito difícil o acesso ao crédito, aí é que ofereces um grande presente à máfia.”
Se as máfias italianas se tornaram num paradigma do crime organizado e foram copiadas pelo mundo fora, a ameaça é global. “A Europa mostrou-se totalmente impreparada. As máfias não respeitam fronteiras e não se assustam com uma suspensão de Schengen”, escreveu o jornalista Roberto Saviano, ameaçado de morte pela Camorra e que há anos vive com escolta policial.
A máfia não deve ser esquecida pela política e relegada para o mero domínio policial. Alerta Franco Gabrielli, supervisor da polícia italiana: “O mundo pós-pandémico será propício ao crime. A máfia sempre foi capaz de se adaptar a todas as grandes transformações sociais, económicas e geopolíticas. Os sindicatos do crime adoptaram as novas tecnologias e plataformas de comunicação, bem como os diferentes cenários financeiros.”
Pensar os grupos mafiosos como como autênticos vírus, que se adaptam e sofrem mutações para infectar sociedades inteiras em busca de poder e lucro.”As ajudas da Europa chegarão aos verdadeiros necessitados quando existem governos cleptocratas, ligados a "máfias", algumas intituladas de "no bom sentido", que sugam os orçamentos das suas regiões, em autênticas máquinas de enriquecer alguns deixando as dívidas para a "pobreza" pagar?